Hoje presenciei um matrimônio. Ou casório. Ou casamento, pros mais acostumados. Cerimônia matrimonial, pros mais frescos literalmente. Ora, que coisa fabulosa! Não conhecia a fundo todos ali presentes, mas conhecia muito bem aqueles que me rodearam por esta noite. Como era de se esperar de alguém que vive às margens da normalidade e dos padrões esperados, surpreendi. Lá e acá, agora, pois a pessoa sobre quem escreverei não brilhou. Não é a noiva, nem as madr(ez)inhas, nem nenhuma musa - e, acredite, elas estavam presentes. Hoje falarei sobre a pessoa que triste e delicadamente observei perder, de maneira imposta e nada livre, sua liberdade. Estava lá quando o pão chegava quente da padaria às quatro da tarde e enquanto ele comia seu lanche de mortadela. Estive lá quando me ensinou a fazer embaixadinha (veja só!) e nos natais quando ele usou seu chapéu verde com uma pena vermelha, ganhado há anos como brinde de uma cerveja alemã (ou assim escreve a minha memória falha). Hoje não é de meu pai que falo. Hoje é do pai de minha mãe. Hoje, é a meu avô materno que me refiro. Pois bem.
Já falei sobre a liberdade aqui. Aliás, sobre a Liberdade. Sim, existe diferença. Porque, se falo da primeira, meu avô perdeu-a. Se falo da segunda, foi forçado a dela divorciar-se. Não sei bem o que dizer pois os afetos são mais rápidos, transparentes e lúcidos que as racionalizações posteriores. O a priori surpreende (!!!) pela imediatez, pela rapidez e, muitas vezes, pela lucidez com que evidenciam nossas reações àquilo que experienciamos. Devo confessar que por um bom tempo entrei no jogo de alguns familiares - o jogo da zombaria e do escárnio brincalhão. Não por falta de amor, que fique bem claro. Por dois motivos, principalmente: pela falta de percepção e sensibilidade pelo outro e, obviamente, pela incapacidade de conter minhas projeções, ainda mais quando o meio era tão propício (um ser frágil e que estava sendo zombado por outros). Mas, de qualquer maneira, "quem vive de passado é museu". Ou não. Lembrem-se, meus caros: sempre "Ou não"! Quem vive de passado, na minha opinião, é quem viveu e quem vive ainda. Afinal, o que somos nós sem nossas lembranças? Pouco ou quase nada, um limite inexistencial que tende a zero.
Desculpe-me, caro leitor, sou prolixo. Como estava dizendo, eu o vi ser privado de sua capacidade de não ser privado de quase nada. Um alguém que sempre usou e abusou da vida, com felicidade contida, mas nunca reprimida. Os doces e os pastéis de feira que costumávamos comer quando eu pouco passava de uma criancinha desesperada por atenção. Sempre saíamos da feira com espadas de plástico compradas na barraca ao lado daquela que vendia as frituras e que até bainha tinham. Lembro-me também da vez que mudei a posição do câmbio de lugar e fiz com que ele batesse o carro no supermercado, acontecimento que me fez escrever de maneira muito mais bela, dado que o castigo aplicado por meu pai foi fazer-me escrever alguma frase que não mais me recordo repetidas vezes num caderninho com várias linhas azuis. Vi-o perder-se em São Paulo, saído sozinho de Campinas com base em pouco mais que um delírio. Vi-me condenando-o a um asilo, de maneira fria e desinteressada. E choro por isso. Ainda tenho tempo, ainda que pouco, para por em prática meu arrependimento tosco, que pouco importa. Como pouco importa a ausência de pregos numa tábua que já está lotada com seus furos.
Hoje, entretanto, ele não mais é o ele de antigamente. Como todos nós, envelheceu. Pra bem e pra mal, claro. Mas adoeceu, também. Pra mal. Não só por conta de sua condição física em si, ou seja, o "pra mal" de sua doença não está inteiramente ligado ao fato de pouco poder se mexer, de pobremente conseguir controlar seus músculos ágeis de ex-jogador de futebol que um dia fora. Está, também, relacionado a como é encarado, como é lidado, como é conversado. Parece que é permeado de um pesar, adequado, mas não menos angustiante. A vida que pinga de seus olhos não vem em lágrimas, mas numa placidez verde de olhos paralisados frente ao acidente inevitável que ocorreu entre sua história recente e o veículo que carrega suas memórias distantes, apagadas. Não muito diferente de um acidente real, seus olhos estampam o torpor e o espanto com como ele não é mais si mesmo. E, é óbvio que falo isso tudo com base apenas em impressões. Mas, também, se queria outra coisa ou pouco valoriza as minhas, já não sei como posso agradá-lo e muito menos como chegaste aqui, prezado Outro.
E, pra sermos aí sim surpreendidos novamente, tudo isso gera, em alguns poucos - como para o que aqui vos escreve, admiração e felicidade. Sim, sinto isso. E, hoje, ouvi também. Mas já tinha isso dentro de mim há tempos, há alguns natais pra ser mais imprecisamente exato. O esforço envolvido e toda a odisseia relacionada a sua locomoção, transporte e os intermináveis cuidados diários providos pela mulher que me foi mãe por vários anos e é, ainda, sua esposa, denotam e deixam transparecer uma resignação com um toque de quem teve que aprender a lidar com uma vida que não é sua. Uma condição que, na verdade, pouco tem de condicional. É uma autoimposição que não é imposta por si, mas pelo corpo que a mente antes dominava. É, literalmente, a submissão da alma ao corpo, a perda da capacidade de expressar-se espontaneamente e passar a espontaneamente ser expresso. Expresso, tal como o café. Moído, triturado, dentro de suas entranhas, por si mesmo, enquanto vê as janelas de sua alma serem concretizadas, endurecidas e se trancarem não por opção. Seus olhos, que antes reluziam, agora tremulam e são pouco mais que meras vidraças congeladas para uma vida que já foi mais calorosa e cheia de potências. Enxergam, pouco vêem. A debilidade é penosa e gera complacência para a maioria de suas falas mal articuladas. A própria voz treme, não mais sendo a música de um instrumento bem afinado que é apenas meio para realizar uma obra complexa, rica, densa e cheia de história.
A pior parte, talvez, seja sua consciência. Como deve ser estar preso à si mesmo, eviscerado, num pêndulo que parece ser eterno mas apresenta, em seu cerne, pouco movimento. Um movimento que não é movimento, é apenas intermitência de músculos não mais respondentes. É apenas intermitência de vida e morte, alternando-se pra ver quem vence naquele momento. E parece que o momento é eterno para ele. Aquele momento parece ser o todo de sua experiência, pois permeia seu cotidiano de forma tão intrincada que acaba se tornando o todo. Como uma teia que prende tudo. Não só o corpo está preso em suas cordas motoras, mas a própria alma vê pouco da luz de fora. E, maravilhosamente, ainda assim emite luz suficiente pra ser tão apreciada. É claro que o apreço confunde-se com a pena e o dó, mas ainda está lá. O que é, afinal, ser incapaz de mover-se? Ser incapaz de ser, efetivamente? É como se o planeta se tornasse o Sol. Aquilo que sempre girou e sempre percorreu caminhos em torno de tudo acaba sendo o motivo pelo qual tantos outros locomovem-se ao seu redor agora, e para si. Acumulou-se tanto que a gravidade própria passou a iluminar a vida de outros tantos. Pobre, eu sei. Mas estou com muitos afetos e arrepios que impedem que a razão tome conta de maneira extremamente proveitosa.
Por fim, sinto curiosidade, sinto saudade, sinto saúde, sinto... Lembro-me, relembro-me, toco-me, arrependo-me, vejo a vida passando diante dos olhos e dos corpos. As almas fluindo, a matéria modificando-se como um rio eterno sem direção nem regido pelas leis que regem as nossas vidas. Não, pois a transcendência é justamente o devir aplicado àquilo que não podemos imaginar ou tocar. É o grandioso se estabelecendo e, talvez, haja um vislumbre, por parte dele, em relação a isso. Afinal, aceitou. No fim, aceitou. Pois não é o fim ainda, nem meu nem dele, e penso que é algo bom o fato de alguém ter vislumbrado tudo isso. Às vezes, por contingências da vida, menosprezo algumas de minhas capacidades, habilidades ou talentos. Seja lá o que for, minha qualidade maior foi sempre perceber e entender o ser humano num nível irracional. Num nível de sentimento, num nível basal e primordial. Claro, desenvolvido porcamente e quase nunca utilizado para os outros. Mas, ainda assim, se faz presente nas horas mais (in)oportunas. Na realidade, não há oportunidade ou inoportunidade, há apenas a abertura da alma para que a alma do outro encontre, por um tempo, uma cama mais mole e um cobertor mais quente onde possa se aconchegar, já que estamos todos apenas tentando suportar o frio gélido e o vento uivante que permeia nossa ínfima existência. Um beijo pra você e espero que apesar de minhas deficiências metafóricas, de coesão e literárias, compreenda minha mensagem. Falta amor nesse mundo que está cheio de amor pra dar. Da mesma forma que falta ao vô a livre-escolha corpórea para dançar sua MPB. Ainda que só. E, sim, pra responder à pergunta que agora brotou na sua cabeça. Você sabe quem é.