A garganta rasga conforme a fumaça quente e amarga entra por minha boca. Não importa, a dor física é almejada apenas por ser uma representante real de uma dor imaginada, mas não menos vivida. Os vícios são pouco mais que desejos expressos nas coisas erradas, incompletos, saindo às avessas de uma rede complexa de sentimentos, toda emaranhada e viscosa. Quando finalmente chega à superfície, já está mascarado e pouco de sua origem caracteriza-o. Não, não me refiro ao cigarro.

A droga que me vicia pouco tem de viciante em si mesma e, além disso, sequer droga é. A droga que seguro entre os dedos é uma substituta falha para aquilo que realmente quero. Seu sorriso cativante é que me rasga, por dentro. Que fique claro ao leitor que não há contradição alguma em um sorriso extremamente cativante ser razão de tamanho sofrimento. É só se levar em conta o fato de que ele nunca será meu. Aliás, que estranha a ideia de possuir alguém... Parece-me errada e geradora de relacionamentos pouco frutíferos. Talvez seja assim. Talvez não. Como eu iria saber? A idealização permeia minha vivência mais que qualquer outra coisa. De certa forma, não deixa de ser bom. Imagine como seria se nem a ela pudéssemos recorrer. Se para tudo precisássemos viver antes de saber... Pouco seríamos parecidos com o que somos hoje. Não que efetivamente saibamos antes de viver, aliás parece ser esse meu maior impedimento. Meu problema insolúvel, como o óleo viscoso que frita as batatas fritas quando mergulhado no refrigerante gasoso que ingerimos quando alimentamo-nos em restaurantes cujos alimentos são de procedência duvidosa e, definitivamente, bem não fazem. Tente figurar como deve ser aquela mistura de óleo e água dentro de si... Ora, para mim é evidente que deve se assemelhar bastante aquilo que agora sinto. Uma coisa aforme, bem mais próxima de um caos do que de uma realidade objetiva.

Há um outro porém em relação ao vício: além de ser um substituto falho, não o é suficientemente para que eu busque o real objeto desejado. Ou seja, além de fazer mal, paraliza. Não que paralizar seja uma outra categoria de coisas que não o mal. Ou talvez não, quem sou para dizer o que é bom ou mau. Talvez esteja mais apto para dizer o que é bem ou mal. Mesmo assim, ainda falta-me experiência e sobra-me drama. A proibição que imponho-me torna tudo tão mais complicado. Não... Não, torna tudo inatingível quando se diz respeito a ela. Ela limita minha experiência, me tolhe e me restringe num nível que beira o da loucura. Traz meu coração à boca nos momentos errados e, ainda assim, sua boca está mais longe que qualquer outro coração que me rodeia. E todo esse mal ela faz com graça, jovialidade e sedução tamanha que tudo mais não importa. O resto pode cair, posso sucumbir, deixar de existir, ainda que valha-me seu sorriso meio dado e seu embaraço gentil. Toda casa me é estranha e o resto do mundo desinteressante porque me deixa com uma sanha angustiante. Busco distrações intermináveis, fugindo do ócio com um medo persecutoriamente infantil. A imaginação não me é refúgio, pois já disse que o rio que é minha vida, por causa dela, possui uma barragem na frente e a água só pode escorrer por alguns canais. Os canais, entretanto, são as formas de seu rosto, seus olhos, seu cabelo que alinha-se perfeitamente no vestido preto que bem me lembro de alguns meses atrás. Então desisti de nadar contra a maré. Ou, nesse caso, contra a correnteza - nunca fui bom de metáforas, sabem muito bem. Torcer para que o barco não vire, porque se me molhar, imagino que até conseguir secar minhas roupas já terei desistido de vesti-las e passarei a andar sem roupas nem barco neste rio.

Mas é óbvio que, por ter escolhido escrever-me fora de meu reduto ermitão, tenho a visista mais prazerosa daquela que me assombra. Literalmente, me as-sombra. Estou escrevendo e, de repente, olho pela janela para encontrar seu olhar. Me penetra com olhos negros como as pedras escuras de praias há muito não visitadas. Sem saudades... Das pedras, é claro. Porque os olhos que me mataram há pouco já me fazem querer renascer para por eles morrer novamente. Os dias acompanham minha melancolia ao fechar as nuvens para qualquer raio de sol. Não pertencem acá, não agora. Agora a noite deveria imperar quase que sem alternância, independente do resto. Sem importância, vago. Sem vagões, mas vago. De-vagar. Torço pra chegar a algum lugar sabendo que esperança não é o que preciso. Aliás, é, de certa maneira, o que me sobra. Falta-me ação. Realização. Concretização. Falta tornar a mistura de argamassa líquida, feia, sem forma e viscosa em algo que finalmente sustente meus passos. Tropeçar, apesar de ser o que só faço ultimamente ao olhá-la, pode acabar quebrando-me uma perna. Pernas são-me pouco úteis. Preciso é de um músculo que mova-me a ela. E não, não são as pernas que me aproximarão dela.

Preciso, na verdade, é gastar menos meus dedos escrevendo sobre minhas projeções idealizadas e começar a agir sobre elas. Seja para bem ou para mal - novamente essa dualidade boba aparece, sinal de poço fundo - preciso agir. Seja para me estilhaçar ou para "seja lá qual seria a outra possibilidade". O mais tragicômico é que realmente não sei qual é a outra possibilidade. Não raciocino quando penso nela. São imagens passando, lembranças de vivências compartilhadas somente comigo mesmo, um casal feito de mim e eu mesmo. Não sei o que aconteceria se acontecesse. Não sei como seria se fosse. Muito menos como faria se fizesse. O que só torna tudo mais depressivo, mais imóvel e, claro, mais instigante. O máximo que posso, agora mesmo, é olhá-la. Ser olhado de volta não me interessa por saber que o olhar não tem o mesmo interesse. Mas, se a carapuça servir... servirá apenas justamente.

Decepciono-me comigo mesmo, afinal, se a escrita é minha, é, também, de certa forma, eu mesmo. E se atualmente é assim que sou, posso apenas esperar por uma melhora intensa e radical! Não prometo mudar, mas talvez transformar seria uma boa ideia. Transformar a matéria indiferenciada e negra que está me cobrindo em um véu um pouco mais útil. Ainda que negro, pelo menos que me esconda das luzes. Ou será que seriam as próprias luzes negras? Oh, se forem... Esperanças serão tão ilusórias quanto minha atual doença: paixonitis acutis.