Nunca escreva o título antes do conteúdo. É como criar a personalidade antes de se ter vivido. É como chover numa tempestade antes de suas nuvens negras se formarem.
Como pensar num indivíduo que se tenta se doar aos outros? Como entender quando alguém põe o outro em primeiro lugar, em detrimento de si mesmo? Um pensamento espontâneo (e refletirei acerca da importância de ser espontâneo posteriormente): talvez, tendo sido rebaixado por muito tempo, é o único jeito de ganhar a atenção de que necessita além da identificação óbvia que se pode estabelecer com alguém que, efetivamente, precise de sua atenção. Já se foi muito pensado, afinal, a dificuldade que é para o ser humano colocar-se em prol do outro a não ser que necessite do mesmo para sua própria sobrevivência, revelando num ato que, num primeiro e inocente olhar, pode parecer altruísta, o tom verdadeiro de egoísmo.
Por que a espontaneidade é importante? Simplesmente o fato de vivermos num mundo com mais de 7 bilhões de pessoas já deveria ser resposta mais que concreta para essa pergunta. Mas creio que o concreto já não me basta. Creio então, que a espontaneidade nos humaniza, nos individualiza e, paradoxalmente, ao mesmo tempo nos socializa. Não pretendo seguir com este raciocínio. É o que é, não há muito mais o que entender ou dizer a respeito. Se esperava muito mais, aprenda a lidar com suas frustrações rapidamente, ou esta coisa, como gosto de chamar esta coisa!, tornar-se-á muito em breve uma tarefa maçante, enfadonha, extenuante e até penosa.
O que me instigou agora foi a mais pura das instigações: o próprio desejo. A vontade ardente de escrever, de projetar em palavras. Por isso a relação com o que é espontâneo. Pela relação direta com o original, o primitivo, o radical. Entretanto, para não banalizarmos o veículo, façamos deste algo mais que uma esgurmitação banal de letras e signos.
Pretendo descrever algumas experiências cotidianas que têm intrinsecamente um valor social, histórico, ético e/moral muito alto. Por vários motivos que agora não são significativos, está calcado no senso comum que o dia-a-dia é irritante, cansativo, chato, angustiante, etc. (Aliás, etc. é algo muito perigoso: deixa o leitor extrair significados não necessariamente implícitos da sequência textual. Felizmente, palavras não se comportam como números, com os quais se pode logicamente deduzir uma sequência após alguns elementos... Entretanto, é preciso tomar o devido cuidado com o que se diz antes de tal abreviação latina) O que tento aqui afirmar é que pensa-se, em geral (mais um alerta: cuidado com as generalizações!), que o cotidiano é ruim. Limita nossa espontaneidade, nossa criatividade, por conta de obrigações raramente escolhidas e que, mesmo quando o são, usualmente não deixam de serem limitantes. Isso tudo é um alerta para que o leitor não identifique projetivamente o que julga serem "experiências cotidianas" e o que o dono dessas perenes palavras quer realmente dizer.
Vejo alguns atos incrivelmente humanos e que vão diretamente contra o que se aprende nesse mesmo cotidiano. O problema da humanidade é que tais atos estão cada vez mais raros e o cotidiano se caracteriza cada vez mais com seus opostos. Uma frase que me recordo até hoje e que vi num terceiro filme de uma trilogia de Tolkien é "Tudo o que temos de decidir é o que fazer com o tempo que nos é dado.". Aliada a uma frase de um filósofo brasileiro que, como todo bom filósofo, não tem o reconhecimento que deveria ter, "Você está fazendo o possível ou você está fazendo o seu melhor?", como diria Mario Sergio Cortella, acredito que aquela direciona bem o homem que busca ser homem e não robô, humano e não máquina.
Aqueles poucos que ainda percebem que fazem parte de um todo me dão esperança. Me vislumbram. Me proporcionam aquilo que ainda não nomeei, mas que é incrivelmente bom. Aquela sensação de arrepio no corpo inteiro ao vislumbrar o bom, ao ter um glimpse do divino. E, claro, existe o divino. O problema do homem, não só nessa situação, é tentar alinhavar o divino com a divindade, o efeito com a causa, e assim por diante. Penso que é muito coerente aqui um exemplo de terras frias e longínquas que há algum tempo me encontrou:
Um brasileiro chega na Suécia a trabalho. Afetivo e caloroso, como um belo estereótipo brasileiro, faz amigos logo no primeiro dia de labor. Um desses amigos oferece-lhe carona para o trabalho e para casa, uma vez que moram perto um do outro. (Aqui já destaco a consciência de um todo, um altruísmo há muito tempo perdido em várias situações...) Todo dia, então, o brasileiro vai e volta para casa com seu novo amigo sueco. Entretanto, há algo que o incomoda: ao chegar no local de trabalho, uma multinacional com um grande complexo de edifícios e um também enorme estacionamento, seu amigo sueco estaciona seu carro numa das últimas vagas, ou seja, uma das vagas mais distantes da entrada do prédio, mesmo que, por chegarem excessivamente cedo no local, o estacionamento esteja vazio e seria muito melhor que eles parassem o veículo mais próximo da entrada. E todo dia o mesmo se repete. Até que, exausto, um dia o brasileiro pergunta: "Ora, por que paramos todo dia aqui quando o estacionamento está vazio e podemos muito bem pegarmos uma vaga mais próxima? Não compreendo!". O sueco então responde: "Ora, é bastante simples: estamos adiantados! Nós temos tempo suficiente para sairmos daqui e caminharmos até nosso posto de trabalho. Enquanto que as pessoas que chegarem atrasadas se sentirão menos infelizes ao encontrarem vagas mais próximas da entrada e, portanto, trabalharão, ainda que pouco, melhor."
É exatamente o tipo de raciocínio envolvido, e não só a ação, que vislumbra. O fato de se pensar no outro e refletir acerca de ações meramente cotidianas... Aquele que relaciona o cotidiano com o medíocre é, muito provável, justamente o responsável por torná-lo medíocre. Vislumbro-me sozinho? Percebo a realidade unicamente, mas será que de forma tão distinta? Amedronto-me ao imaginar ser só ao sentir arrepio na espinha ao ouvir uma situação dessas. Os olhos afogam-se em lágrimas felizes... O sorriso é líquido e escorre pelo rosto... É um sorriso diferente daquele comum, que abre os lábios e mostra suas presas, prontas pra infligir dor no outro. É um sorriso que vai contra a ordem natural de armazenar o máximo de água e sais possível para mostrar ao outro a humildade e a sensibilidade. Raramente mostro-a, entretanto. O preenchimento da alma se dá de fora pra dentro, não o contrário. Por isso, ainda acredito não ser patologicamente narcísico, talvez! Ainda que raro, desviante, anormal se levar em consideração o sentido estatístico.
A noite chega, as obrigações do dia seguinte batem à porta. O cotidiano revela-se, novamente, limitante, castrador, tolhedor. Ainda bem que a criatividade é o sol do humano... Bota-lhe a peneira, o óculos e até mesmo infinitas nuvens, ele ultrapassa todos e ilumina o resto que por baixo se esconde. Mas também é bom, o descanso. O peso nos olhos, o sentimento prazeroso de se acordar no dia seguinte, com um sono e uma preguiça tão intensos que qualquer encosto por alguns minutos é quase tão delicioso quanto um orgasmo.
Adeus. Por agora.