Pela primeira vez, de novo. As sucessões de primeiras vezes ultimamente me completam como os trens dos metrôs preenchem os vazios subterrâneos de uma cidade que fez-me apaixonar. E a paixão, ironicamente numa contradição repetidamente inédita, é, pela primeira vez (de novo), por um algo. Não por um alguém, na tentativa incansável e patética de tapar os buracos de minhas avenidas amorosas. Como se eu, como veículo, não pudesse transitar nesse asfalto imperfeito. A placa de minha personalidade tem final dinâmico e muda conforme o rodízio daquele dia, não deixando-me andar por estas vias que já tanto me multaram. Assim, por muito tempo mantive-me estacionado em local proibido: a vida. Agora, o fiscal do tempo coleta as multas e pago com arrependimentos (dinheiro que me sobra). As vivências infinitas em possibilidades nessa selva de pedra me exaurem prazerosamente. Enquanto o andar se torna, lentamente, fisicamente maçante, a mente não para e os estímulos forçam-se para dentro de meu corpo como agulhas, tatuando-me com cores vibrantes, sons novos e silêncios já bem conhecidos. As sucessões de arrepios pelo corpo e de frios na barriga reinventam-se e não mais me paralisam, mas me empurram para um abismo escuro onde caio eternamente sem me preocupar quando atingirei o chão. Em vez disso, concentro todos meus esforços para sentir cada cheiro, cada gosto, cada vislumbre que se apresentam para mim numa dança caótica de sensações revigorantes. A brisa que me carrega no cair da tarde é um sopro libertador de uma juventude amadurecida. E, conforme vou vivendo esses dias, esqueço-me de ficar triste. Perco o compromisso marcado com a melancolia, deixando-a voltar para meu eu dentro do espelho. Quando ela insiste em ficar, digo-lhe que o ente que a espera do outro lado do vidro sentirá saudade e carência, que ela o acompanhe. Ao ouvir nossa conversa, aquele que era e sou eu, cristalizado, surpreende-se e eu, que já fui e sou ele, retribuo um sorriso malicioso, sabendo que aquela senhora não perderá muito tempo antes de voltar a cumprimentar-me solenemente. Mas essa não é a história de sua viagem. Essa é a história de sua volta.

Devo dizer que a ida à São Paulo me transformou. Mas não interprete essa palavra pobremente: as mudanças são tão boas quanto ruins, no melhor dos casos. A gramática aqui casa-se com a semântica pois um "s" faz toda a diferença: a mudança é sempre boa, mas as mudanças não são só isso. Viajei e, claro, levei comigo uma mala. Ou melhor, levei duas malas. Uma delas era relativamente grande, carregou as coisas menos importantes, ainda que essenciais. Refiro-me à mala das roupas, utensílios, livros, etc. A outra é bem pequena, invisível e carregou minhas experiências, lembranças, sentimentos e tudo aquilo que me faz eu. E, apesar de invisível, essa mala não passou desapercebida por minha companhia. Ironicamente, num dos melhores fins de semana de minha vida, em que cancelei os encontros com a melancolia, fui informado de que não estava relaxado e que não estava curtindo o momento. Foi nessa hora que a melancolia voltou a cumprimentar-me. Na verdade, a melancolia sempre esteve presente e só não me encontrei com ela por ela já ser parte constituinte de mim mesmo há anos. Sempre ali, como uma sombra, um pano de fundo de minha vida, uma eterna e íntima companheira que visita-me em épocas inesperadas, mas sempre claramente anunciadas. A escuridão que me puxa para o nada, aquela que me faz pensar numa viagem só de ida para o vazio. Ultimamente, temos conversado bastante. Eu e a melancolia, é claro. Porque as pessoas que me interessam conversar... Bom, essas não tem ela como melhor amiga.

De qualquer forma, a tristeza não existiu naqueles três dias. Foram ótimos. A urbanidade da cidade me atingiu em cheio e maravilhei-me, quase como um gesto intencionalmente impossível, mas que existiu. Tive a impressão de estar em outro lugar, ainda que sentisse que aquela era minha casa. Meus olhos brilhavam a cada esquina virada e nunca alguém sentiu tanto prazer por estar dentro de um metrô. Até o ar me impressionava. Os rostos nunca vistos, as ruas nunca percorridas, as calçadas irregulares, os prédios altos nunca imaginados e as avenidas largas me conduziam em direção a um êxtase simples. Só havia um problema: minha mala me acompanhava. Ainda que não levasse nada para lá além de mim mesmo, levaria tudo. O vazio não é tão vazio assim, afinal. Tem contornos, formas, objetos, lembranças, vivências, sentimentos... Todos inéditos, mas ali. Entretanto, muito bem conhecidos outrora e algures. Portanto, o novo e o inédito eram repetidos. Não havia percebido isso na hora, já que o êxtase me anestesiava completamente. A excentricidade da cidade me fazia esquecer de minha idade, trazendo-me felicidade e vaidade. Ali, eu podia. Ali, ninguém me conhecia. Exceto, é claro, eu mesmo. Eu sabia. Mas esqueci, por bons três dias. Até o tempo pareceu concordar comigo: existencialmente, passou rápido; climaticamente, estava quente e acolhedor. Completamente oposto à realidade paulistana. Completamente oposto à minha realidade.

Dois momentos me marcaram. Ainda que distintos, foram similares em vários aspectos. Tanto aquele fim de tarde com o MASP atrás de mim, sentados numa beira de concreto, quanto a noite virada na varanda, falando sobre tudo e não dizendo nada, me fizeram ponderar sobre muito, chegando a nenhuma conclusão de fato. Foram momentos em que a vida simplesmente existiu, o tempo passou, o sol (ou a lua) caiu e houve troca. No MASP, entre mim e o mundo. Na varanda, entre mim e ela. Ela, a dona dos olhos que coloriram São Paulo com um verde boêmio lindo e puro. Ela, que me mostrou os trilhos e depois tirou-me deles. Ela, que é ela sendo ela, diferentemente de tantas outras que são querendo ser outra coisa. Ela, marcada pela vida de formas e em momentos tão diversos quanto sua idade permite. Ela, que me mostrou a terra da garoa em dias de sol. Ela, que gentilmente cedeu-me espaço para experienciar coisas novas, ainda que por pouco tempo. Ela, que ainda que seja unicamente ela, foi também minhas reticências em vez de meus dois pontos (ainda não tenho coragem para dizer que foi um ponto final, pois este é o único ponto em que ainda resta esperança).

São Paulo foi exclamação enquanto eu a lia. Ela foi interrogação em todos os momentos. São Paulo foi um parênteses em minhas férias. Ela foi as aspas. São Paulo foi dois pontos. Ela foi reticência. São Paulo foi vírgula. Ela foi... Fui pra ser amante, voltei sendo amigo (de novo). Enquanto a cidade era um livro aberto pronto pra ser lido, ela foi uma história não publicada pelos seus autores. As pontuações de minha vida me enlouquecem como enlouqueceram o eu que não conseguia aprendê-las corretamente na 5ª série. Diferentemente das regras gramaticais, as da vida não são exatas, sendo, às vezes, completamente facultativas. Em algum momento, lá, confundi-me e usei pontos de interrogação em vez de vírgulas, exclamações quando deveria ter usado pontos de interrogação e pontos finais mentais quando deveria simplesmente ter deixado o texto correr, usei um travessão e esqueci de escrever o diálogo em seguida, deixei que as reticências fossem imperadoras de minha viagem e voltei com muitas histórias para contar para ninguém. Entendi tudo errado e achei que meu gosto por escrever se estenderia a tudo. Não. Não gosto de ser autor de minha vida. É muito mais fácil pular para o final e lê-la. Gostando ou não, será a história que foi. O peso existencial de minhas atitudes me esmaga como um prédio paulistano sendo demolido. Os prédios estão caindo e eu estou na garagem. Gostaria de ler minha biografia post mortem e saber se a pontuação é positiva... Ora, o que estou tentando fazer? Julgar um livro com parâmetros matemáticos? Só posso estar realmente ensandecido. Mas, se posso dizer algo sobre este capítulo, é que fui um 1. Sinto-me como um 1 na multiplicação. Apesar de estar ali, não mudo o resultado. Ela me disse, após alguns dias de meu retorno, que chamaria um amigo para passar uns dias lá, que não sabia por que eles não "tinham dado certo". Simples assim. Nunca fui contabilizado. Nesse caso, fui um zero na soma. Fui completamente ignorado como possibilidade. Ainda que não por ela, por mim mesmo. Por causa daquela mala que mencionei no início. Não fui um zero à esquerda. Fui um zero à direita. Completamente irrelevante e que só serve pra demonstrar uma exatidão indesejada (tanto por mim quanto pelos outros, mas que, ainda assim, é onipresente quando se trata de mim).

Deveria ter... Enquanto a música dos Titãs perpassa meus pensamentos, ela com certeza não perpassa minhas ações. Afinal, foi o que foi. E aquele tempo está perdido. Aquela tarde no MASP, aquela noite na varanda, a visão de seus olhos nos meus, a companhia pelas ruas paulistanas, tudo. Passou. E não tem volta. Caiu tudo pra sempre naquele abismo que os estímulos dessa mesma cidade me empurravam. Eu queria que tivesse sido diferente? Agora, com certeza. Mas enquanto estive lá, paradoxalmente, tudo parecia bem. A palavra central, aqui, é "parecia". Então, se tivesse percebido isso antes, ... Não, tudo teria sido igual. Talvez. Quem sabe? Não importa. Passou. Aqueles ares nunca serão respirados novamente. Não daquele jeito. Não daquela maneira. Mas, enfim, fim. É só isso. Às vezes as vezes que achamos ter são menos vezes que de fato temos. Deveria ter feito algo. Deveria ter tentado beijá-la. Deveria. Mas não fiz. De novo. Novamente, o não marcou mais que o sim. Pelo menos, minha conta bancária pra pagar o fiscal está crescendo. Que pena que ela não serve para comprar-me felicidade. Que pena que ela não serve para comprar presentes para ela. Afinal, ela é ela e não minha. Ainda que os pronomes possessivos sejam uma péssima maneira de descrever como imagino relações amorosas, eles com certeza servem melhor que os pronomes pessoais do caso reto. E, aparentemente, tudo indica que minha vida será uma eterna repetição de pronomes pessoais do caso reto em vez dos tão sonhados pronomes pessoais oblíquos tônicos, especialmente os de função comitativa.