Meus pêlos todos se eriçam e parecem antenas que captam as vibrações que emanam de uma noite boêmia com uma boa companhia. Os três C's, ela me disse, que juntos são sensacionais: cerveja, conversa e cigarro. Não podia concordar mais. E enquanto o tempo deixa de existir, voltamos nós mesmos a tempos que só existem em nossos corações, novelos emaranhados de memórias boas e ruins, que desenrolamos com um cuidado velado. Cada linha nos leva a épocas diferentes, a dores únicas e os trilhos que traçamos naquele canto de bar são tão inexistentes quanto o tempo que passamos juntos ali. E, ainda assim, tudo pareceu durar bem mais que um instante. Bons tempos, afinal, acontecem quando estamos ocupados demais pra contar o passar das horas e nos espantamos quando pisamos de novo na terra firme da ditadura dos relógios. Estava desacostumado a isso. Será que algum dia eu sequer me acostumara? Ou será que são só desejos camuflados de lembranças de uma vida que não vivi? Será por isso que a desejo tanto agora? Anseio, suplico, imploro e suspiro por ela. Oras... Até aí, nenhuma surpresa, afinal minhas expectativas nunca foram muito alinhadas com o mundo real.

Posso quase sentir os seus arrepios, como se estivesse debaixo de sua pele, ao ver seus olhos brilharem mais do que o normal sob a luz branca daquele boteco quando ela fala sobre uma tragédia num ano já dito trágico. Era quase como se ela não estivesse mais ali ou como se a situação toda se sentasse conosco na mesa e assombrasse nossa conversa, tudo vindo a tona de novo. Um ser marinho que lembra que precisa respirar depois de anos debaixo da superfície. Mas creio, pela vermelhidão em seus olhos e pela mudança do timbre em sua voz, que não se tratava de um animal muito fofo. Pudera: falávamos sobre a dona de todos nós, a primeira-dama de todo ser humano que já viveu, a conhecida de todo aquele que já se esvaiu para a escuridão: la Mort. Apesar disso, me pego dando risadas e vivendo, pela primeira vez, um momento felizmente construído sem o medo do que poderia acontecer. E, como não poderia deixar de ser, o momento acaba antes mesmo de começar.

Uma coisa é certa: se a felicidade fosse uma pessoa, atualmente ela teria depressão. Endeusamos tanto a pobrezinha que ela não suportaria ser ela mesma. Idealizamos que seja autônoma, a tornamos tão responsável por nossa vida e a colocamos em pedestais tão altos que nem a melhor das tecnologias de engenharia hoje poderiam construir. Talvez, ela consista apenas numa boa reunião dos C's certos, no momento certo, evitando que nossos maiores medos tomem conta, fazendo-nos esquecê-los por alguns instantes ínfimos quando comparados ao resto de nossas vidas que, por sua vez, também são curtas demais pra serem negadas. Conforme a noite evoluía, entendíamos que a dor demanda ser sentida e nos perguntamos se nosso plano é bom, se ele é no tom, se ele se conclui. No fim, nos despedimos sem respostas e, ainda assim, bem menos vazios que antes de nossos olhares se cruzarem numa livraria. Assim, talvez a tal da felicidade seja outra humana como nós: sofre também, existe e inexiste dependendo do tempo, que por si só já é ilusão. A felicidade, afinal, se esconde nos silêncios de sua velha amiga tristeza. Talvez um dia vivamos. Seja lá o que tiver que ser. Hoje, me basta o fato de que vivemos. Seja lá o que foi.

Enquanto a noite se aproxima de seu auge, com a lua exatamente no meio do céu, a infelicidade intrinsecamente relacionada a todo fim se coloca no centro de mim. Apesar disso, estou bem porque sei que aproveitei minhas horas da melhor maneira possível dadas as condições objetivas e subjetivas que me permeiam. Enquanto tragamos o amor em 7 minutos, enquanto esvaziamos as garrafas de cerveja, enquanto as conversas vem e vão, enquanto o tempo voa... Uma sucessão de enquantos bons marcam uma noite inesperadamente interessante. Pra fechar a noite, resolvo regressar de maneira incomum para aqueles que não são eu: vou vagando pelas ruas fantasmagoricamente vazias e escuras, enquanto intuo meu caminho de volta pro lar. Ironicamente, no momento em que me sinto mais perdido nesses espaços intersticiais das casas dessa cidade é que vejo a artéria de asfalto que estava procurando e que me levaria de volta ao meu coração de algodão, minha tão amada cama. Talvez ela seja, hoje, minha melhor e mais íntima companheira. Porque dela só saio pra ser feliz e posso sempre pra ela retornar quando estou triste. Será que é pedir muito encontrar um alguém assim? Talvez, busco isso tão incessantemente que esqueci de reparar as vezes que essa pessoa me deu um abraço, achando que ela era só mais uma pessoa em minha vida.

Um frio me assola agora... É aquele frio que sentimos no âmago de nossos abdômens quando nos vemos frente às coisas extremamente boas da vida. Porque, sendo humanos, sabemos de nossa capacidade de estragá-las. Enquanto o frio toma conta, o pescoço esquenta e sinto as marteladas de meu coração em meus ouvidos. A temperatura sobe, o peito vira uma caixa de som e os dedos perdem o calor rapidamente. E nessa sucessão cíclica, mas nunca igual, de calores fugindo dos dedos, de marteladas nos ouvidos e de pescoços avermelhados, vou vivendo, sorte de poucos e angústia de todos. Mas já decidi que preciso deixar o sobreviver de lado: sobre-viver sabemos pouco, então vale mais a pena só viver. E, ao fazê-lo, da melhor maneira possível e sem ou com poucos arrependimentos, poder sossegar em paz, entendendo que os desperdícios de tempo são os tempos mais bem gastos de nossa tragédia cotidiana.