Permita-me apresentá-la. Permita-me tentar traduzir em letras o que gera em mim a covinha que existe entre sua boca e suas maçãs quando sorri. Permita-me errar ao descrevê-la e adulterar completamente seu jeito particular. Conceda-me liberdade suficiente para que possa imaginá-la em palavras e usurpar todo seu conteúdo. Deixe-me assim como ela o faz todo dia, ao ir embora sempre graciosamente. Permita-me demonstrar-lhe os motivos pelos quais sua leveza pesa-me tanto no coração. Permita-me ser um pouco demasiado platônico e, assim, convencer-te de que, se estou louco, é de paixões que farreiam dentro de mim e me fazem parecer bobo enquanto, ao mesmo tempo, frio. Permita-me mostrar sua beleza e, ao fazê-lo, torná-la feia, pois esta não cabe no mundo. Permita-me explicar como é possível sofrer diante d'algo tão belo. Permita-me explicar como é possível cálice de tão doce vinho fazer tão mal a alguém. Permita-me te dizer quão frio ela me faz sentir quando o calor de seu hálito perpassa de maneira angustiantemente rápida meus ouvidos. Permita-me amá-la, ainda que aqui, num quarto que está tão vazio quanto eu estou cheio dela. Permita-me presentear-me com as lembranças que tenho dela. Gostaria de suceder em minha empreitada. Aqui e lá. Mas tal qual é desejo, é provável que falhe. Mas já que me permites...
Seus cabelos recentemente ruivos a servem tão bem quanto os castanhos do passado. Mas não a tornam fogo ou fogueira. Mudam-na, tornando-a brasa calma recém apagada, quente o suficiente para queimar, com restos de brilho alaranjado, em meio a cinzas brancas e pretas que denotam suas transformações. Transformou-se, para mim, em objeto de contemplação, de vislumbramento e, enfim, paixão. Paixão calma como lago, deturpada não pelos cascalhos jogados pela vida, mas por sua imagem refletida em um lago fundo de projeções exclusivamente minhas. Ela é a (des)razão por que meu coração transforma-se em instrumento de percussão no fundo de meus ouvidos, por que sinto o sangue fugir dos dedos das mãos geladas que agora conversam contigo, por que sinto-me enrubescer, por que o frio passa a assolar meu abdômen e por que meu sorriso demonstra mais tristeza que meus raros observadores presumem. E gosto de cada uma dessas sensações. Aprecio cada uma conforme elas se apresentam e me cumprimentam, dizendo um "Oi" que denota um toque fresco, mas relembra situações até então olvidadas. O gosto amargo que minha boca sente a cada manhã no encontro infelizmente efêmero com seus olhos escuros é fruto do medo que sinto por conta de imaginar como ela penetrou em meus pensamentos. Como um tiro que deixa fluir no lugar de sangue escuro e viscoso um líquido rubro, quente e fino que carrega em si todos meus sentimentos. Então, não há alívio, pois as únicas coisas reais que tenho em mim dela são eles. E se até eles me deixam, o vazio instantaneamente preenche a sensação de sucumbir ao nada, sempre presente. São pequenas vontades de alguém que está tão perto de mim e, ainda assim, tão longe.
O mero fato de não existir primeira pessoa do singular no modo imperativo dos verbos já evidencia o quão ignorante somos em relação a nós mesmos, pensando que somos incapazes de nos obrigar. Se somos incapazes de algo é evidenciar essa submissão que é tão existente quanto a ausência de tal conjugação. Somos escravos de nós mesmos e os grilhões são as paixões. Imagino como seria tocá-la, como seria senti-la, como seria se fosse, de fato. Vejo em um universo que só existe dentro de mim, como seria acordar ao lado da luz refletindo em sua pele alva, vê-la esforçar-se para abrir os olhos e tornar a fechá-los, enquanto me dá um presente tão magnífico que é seu sorriso. Que vida boa deve ser poder acompanhá-la, em que a preocupação do dia é acalmada com o florescer da jovialidade d'almadela. Como deve ser lindo ser aquele que partilha com ela o momento em que as costas de dois dedos afagam seu rosto belo, tocando-lhe vagarosamente com tanta preocupação quanto amor nas bochechas e percebendo como aquele instante é infinito, vê-la adormecer enquanto seus cabelos dão-me o consentimento para serem acariciados, assistir enquanto ela desfila da sala para o quarto e não mais observá-la com tanta graça e alheia a mim, poder estar lado a lado com ela enquanto contemplamos o fim de uma tarde preciosamente fria numa praia vazia, ser aquele que a ajuda após uma queda, aquele que a empurra, já que não pode andar dada tamanha cativante despreocupação com o resto do mundo, sendo ainda menos egoísta por isso. Ouvir seu calor, provar seu amor e cheirar seu odor. Às minhas mãos, dar companheiras. Entender que as brigas são frutos de amor imenso. Enxergar a beleza e perceber que é ela quem vi. Vislumbrar o silêncio e ser capaz de conversar por horas com ele, pois muito tenho a dizer sobre ti. Sua graciosidade me encanta, sua leveza me afunda, seu sorriso me arrepia, seu olhar me desvela de toda pretensão de ser e, quando contigo falo, tenho certeza que não sabes do que ocorre em mim, não sabes do nervosismo, do prazer e da angústia, que nascem porque sei que logo o diálogo acabará.
És linda, como és linda. Mais que em seu corpo, vislumbro-te e percebo como és profunda. E, sem vontade de voltar pra tomar fôlego, afogo-me. Trôpego ao avistar-te, prossigo louco no meio-fio de minha vida, torcendo para que ninguém passe por cima de corpo que você derrubou com grande paixão. Estatelado estou, desconsolado sou e sem você, eu vou, indo... Tentando, ao menos, ser menos óbvio, ser menos público, posto já que não somos, que eu seja por mim e ti, eu mesmo. E, ao sê-lo, possa vivenciar metade do que viveria ao seu lado. Como a primeira folha que cai no outono, és o anúncio de que o frio está chegando, mas não és, em si, gelada. És boa, por isso anuncia e faz agasalhar-me com o pouco calor que vem de seu corpo para proteger-me do frio que sua partida me ocasiona, da mesma maneira que o frio introduz-se enquanto o outono diz adeus. Sonho com os tempos nossos que nunca existiram e com os momentos seus que desejo partilhar. Sou observador mas também sou o observado. Reparo em ti e perco logo qualquer concentração em seja lá qual for a cerimônia formal de avaliação numa sala de aula cheia de gente e conhecimentos que não me importam. Meus olhos só podem encontrar os seus através de uma sala que está cheia de pessoas menos importantes que você. Seus lábios cálidos me acalmam, seu rosto doce me faz pensar em sua sutileza, sentir sua delicadeza, que me empurrou pro precipício de seus amores, no qual continuo caindo. Se não bato no chão, é porque o sentimento e os pensamentos são mais profundos que o desejável para uma situação unilateral como esta. Não posso prosseguir porque suas lembranças me desestruturam. Recordo-me da vez que ela estava rodopiando com uma saia longa preta e camisa branca numa festa em que eu estava acompanhado por alguém que, na época, pensava ser Alguém... Lembranças me atingem como notas mentais de arrependimento pelo que não vivi. Não só ao lado dela, mas ao lado de outros e sozinho. Por quê? Não sei. Por vários motivos. 100 mais. Se entendeu, isso já foi demais além. Mas foi bom que foi, pois isto é o pouco que me resta, a única coisa que posso fazer sem levar comigo para o muro de lamentações, que tanto venho frequentando ultimamente, outros que pouco tem a ver com isso.
[...]
Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas como a única coisa
Que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que eu ouço
Mas a outra metade é o que calo
[...]
Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela mesma não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é a plateia
E a outra metade a canção
E que minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
Metade - Oswaldo Montenegro
Pra inovar um pouco, sugestão pra acompanhar o texto: