Naquele dia ela não estava ali. Sua carteira estava vazia. Curiosamente, o ar também o estava. Fino, frio e leve. Mal percebia-se sua presença e o respirar não passava de um ato automático, mecânico e cuja função era preservar, com o mesmo automatismo, uma vida sem grandes acontecimentos. Cada um na sala estava voltado para uma coisa diferente num individualismo marcantemente contemporâneo. A maioria confrontava o vazio de si encarando aparelhos eletrônicos tão pequenos e finos quanto suas percepções diante a infinitude do universo.

Naquele dia ela estava (pre)ocupada com outras situações e pessoas que não faziam parte de meu falso grupo de amigos cotidianos. Para complementar minha insatisfação, nem mesmo havia uma sensação bucólica. A cotidianeidade perdera, ao crescer da barba, o brilho de uma pele jovial frente ao sol que aquecia manhãs intensamente despreocupadas. Minhas funções psíquicas mais elevadas só me faziam entristecer ainda mais. Por isso, minha única vontade possível em sua ausência era a de ver o dia terminar. Como que um marinheiro recém tornado náufrago, eu estava boiando no alto mar que era o dia repleto de estímulos que de nada adiantariam para matar minha sede por ela ou resgatar-me para o porto seguro que seria seu abraço numa manhã como esta. Só me restava esperar o sol queimar-me os olhos e a água salgada embrulhar-me o estômago frente à possibilidade de avistá-la, num delírio que pouco difere daqueles experienciados por pessoas que, de fato, naufragaram.

Pela primeira ocasião desde o naufrágio, o sentimento de indiferença é mais intenso que qualquer outro. Talvez seja o mais árduo de descrever, pois é a simples ausência de reação à experiência maravilhosa de viver. Apesar do marasmo, não abandono uma opinião recentemente adotada de otimismo. E acabo de perceber que ela estava aqui o tempo todo, afinal. Enganara-me: meus olhos cabisbaixos não a tinham notado, numa expressão incrível de meu martírio circense.

Ora, então o dia acabou de ficar menos cinza. Ainda que queime as portas de meu corpo, que são entradas para minha alma, penso que tais portas constituíram-se demasiado grossas ao longo dos anos. Entretanto, por mais que sua luz descasque este mogno duro, cabe somente a mim lixá-lo e pintá-lo de cor mais suave. Uma que não amedronte tanto aqueles que as escancaram, apesar de o que há dentro da casa continuar sendo obscuro e a própria casa ser somente quente em um cômodo mais profundo, acessível apenas aos que estão dispostos a destrancar as várias fechaduras de mim mesmo.

Um tremor leve me aflige, a ansiedade aporta-se em mim, deixando minhas mãos geladas e, como uma visita inesperada e indesejada, transforma a saliva em líquido espesso e viscoso, enchendo minha boca com um gosto amargo e que diz muito sobre quem estou enfrentando por dentro. Um monstrinho estranho, disforme, de pedra negra e dura, cheio de pontas cortantes que pintam em meus antebraços um quadro com cores rubras, vivas e anunciam sentimentos bem conhecidos.

A cada vez que passo por ela, seu vento alenta um coração instantaneamente apressado por desvencilhar-se de suas amarras. Assim, sinto amor e corro dele, pois ele me gera angústias impensáveis que não possuem o menor sentido racional. Estou fugindo. Dela, das aulas, dos pensamentos, dos sentimentos e da vida. E nessa fuga sem fim, tropeço tantas vezes quanto imaginável em meus próprios cadarços, que dentro de mim são denominados lembranças: apesar de tornarem-me quem sou e permitirem-me correr calçado de identidade, são também a causa de um andar preso e desgraçado, uma vez que fazem-me prestar mais atenção no andar em si do que seria necessário se tais fios estivessem justamente presos. Aparentemente, não percebi ainda que tal fuga me levará ao nada. Não à nada. Ao nada. Se queres um correspondente substantivo feminino, então à morte.

Minha imaginação fértil desvincula-me dessa realidade mundana e faz-me assinar divórcio com o tempo. Perco-me nas pedras escuras e brilhantes de seus olhos - que lembram a axinite - enquanto os meus se ofuscam com sua altivez. Anseio por situações que fariam-me embaraçado, excessivamente pensativo, pouco autêntico e impulsivamente expressivo. Ainda assim, as anseio sem piedade por mim mesmo, sabendo que as teria vivido e isso é o que importaria. Enquanto ouço os murmúrios aveludados de sua voz, desejo que pudesse estar ao seu lado para que o calor de seus dizeres acariciassem meu corpo frio. Mas vivo numa realidade fria, num mundo gélido, onde o único calor que impede-me de morrer no inverno eterno de minha alma vem de palavras pobremente estruturadas em um tecido rijo e levemente áspero, que me vestem como um manto. Ora, se já sentiste frio, sabes bem que poetas não resistem ao inverno de si mesmos porque o efeito que sua escrita tem sobre eles não é somente acalentador. Ou seja, meu manto possui vários furos, expondo partes de minha pele ao vento.

Postar-me-ei novamente no encosto desconfortável da cadeira branca e dura, pois tenho obrigações acadêmicas a cumprir. Obrigações que, diga-se de passagem, só se cumprem porque são o que são. E, apesar delas, minhas vertigens continuarão, bem como as ansiedades, as angústias, os prazeres de vê-la e o frio em minhas mãos. Afinal, persisto vivendo. Não sequei-me, como fazem as ilhas na maré baixa. Continuo extremamente molhado e inundado por paixões que não se sustentam como as ondas da praia, quebrando-se muito antes.